terça-feira, 5 de outubro de 2010

Carta ao Gestor do CEU Lajeado: Ocorrência Artística

‘OCORRÊNCIA’: Ação de ocorrer- acontecer

Hoje, dia último do mês de Setembro do ano de 2010, me coloco à disposição de qualquer questionamento a respeito da ação artística ocorrida no dia de ontem no espaço público do CEU Lajeado.

Nós, artistas-educadores do Programa de Iniciação Artística, fomos convidados há poucas semanas atrás pelo NAC para criar intervenções no espaço de convívio do camarim junto aos alunos do programa. Como artista plástica, como professora e cidadã, considerei a idéia ousada e muito atraente no que se refere a uma proposta de apropriação da comunidade ao espaço que lhe pertence, além de desmitificar o espaço de preparação dos artistas visitante do Teatro do CEU Lajeado. Embora a intervenção, por sua própria natureza, tenha um caráter subversivo, atualmente é tida como legítima manifestação artística, muitas vezes patrocinada pelo Poder Público, e no meu caso, havia uma autorização, um convite para nos fazermos presentes dentro desse espaço em forma de Arte.

Se houve algum equívoco em relação à realização de nossa intervenção pode-se considerar a falta de comunicação “do quê” realizaríamos como causa. Dessa circunstância me coloco inteiramente responsável já que o planejamento das minhas aulas junto aos pré-adolescentes acontece coletivamente no momento da aula. O Teatro do CEU Lajeado estava disponível para o nosso trabalho naquela tarde- como foi checado junto à equipe do NAC no mesmo dia. Também tivemos o privilégio de receber latas de spray cedidas gentilmente pelo gestor do CEU Lajeado. Essa combinação de fatores parecia contribuir para que aquela tarde de quarta feira se tornasse o momento de exploração de nossos trabalhos naquele local oferecido.

Meus alunos do PIÁ de 11 a 13 anos são na sua metade crianças já participantes do programa e a outra metade de novos frequentantes. Todos a partir desse segundo semestre entraram nesse grande desafio de buscar entender e se comunicar através da iniciação artística das Artes Visuais. Como de costume, as Artes Visuais no primeiro entendimento são ligadas à representação da realidade através dos desenhos e pinturas que mais se pareçam com o que podemos ver. A beleza parece só ser encontrada dentro do que podemos reconhecer como uma figura fidedigna ao que já conhecemos, transformando a ação artística em um mero artifício técnico ou mesmo em um dom divino daqueles que conseguem conceber trabalhos dentro dessas características.

Meu maior objetivo junto a esses alunos é constituir uma autonomia de produção de trabalho e ferramentas para se comunicar e se manifestar através dessa linguagem artística. Cada um é um individuo único dentro de possibilidades incontáveis de criação e confecção de conhecimento visual. Para possibilitar esse percurso, tenho os estimulado a se relacionarem com práticas de criação que os desafiem principalmente em relação aos suportes, às técnicas e o mais importante de tudo, a individualidade potencial que cada um pode vir a encontrar explorando as possibilidades dentro dos desafios propostos em sala.

De Agosto até o dia de ontem temos conhecido vários trabalhos de diferentes artistas que se comunicam de formas diferentes. Buscamos aliar o pensamento e a crítica com o que estamos produzindo desde então: os porquês, os para quês, os ondes e principamente, quem somos a partir disso que mostramos. Já experimentamos materiais, trocamos o lápis e desenhamos com o próprio papel utilizando a área externa do CEU Lajeado como suporte dos desenhos, já entendemos o conceito de efemeridade doando nossos desenhos para a comunidade ao redor do equipamento, já desenhamos os lugares que tanto conhecemos e descobrimos que mesmo dessa maneira os desenhos são diferentes de como vemos a imagem real e são legais assim mesmo, já nos desafiamos desenhando de maneiras absurdas afinal o que importa é descobrir a melhor maneira que cada um gostaria de desenhar e nem tanto o resultado que esse desafio poderia nos proporcionar... e aí havia o camarim do teatro.

No primeiro momento da aula de ontem nos colocamos a observar inúmeros cartões de imagens de diferentes artistas plásticos trazidos por mim. Cada um escolheu o que mais lhe interessava e a imagem que lhe causava estranheza. Nos exercitamos buscando explicar as razões dessas escolhas- um exercício para aprendermos a argumentar a respeito dos trabalhos.

No segundo momento levei todos os alunos presentes para conhecer esse lugar no qual trabalharíamos naquele dia: o camarim. A proposta é que faríamos uma doação de desenhos em forma de agradecimento à esses artistas que em alguma oportunidade freqüentarão esse espaço e também doarão sua Arte à comunidade de Guaianazes. Seria uma troca, uma doação de nós para o CEU e de nós para esses Artistas volantes. Muitos dos alunos nunca haviam estado naquele espaço, além de não entender a função daquele “banheiro” tão grande. Se o espaço era grande provavelmente havia sido construído para muitas pessoas passarem por ali, inclusive nós em algum momento de apresentação. Também entendemos que mais do que um banheiro grande, o camarim é um espaço de preparação, de concentração e coletivo (mais ou menos como nosso Ateliê).

Eu apresentei as portas dos boxes dos banheiros como o espaço em que trabalharíamos naquela tarde. Cada aluno se tornaria responsável por uma face dessas portas. Nos dirigimos a Sala-Ateliê e cada aluno confeccionou o projeto dm desenho para a realização da intervenção. A partir dos projetos propus que cada um buscasse clarear todas as maneiras e materiais para que conseguíssemos realizar nossos objetivos. A Tinta em spray caiu como uma luva já que a outra alternativa existente seria o guache, que é diluível em água e se tornaria um transtorno quando alguém fosse limpar aquele ambiente. Pensando nesse material, produzimos “máscaras” nas folhas de raio-X que são adequadas para reproduzir os mesmos desenhos em diferentes superfícies. Além disso, tivemos o cuidado de levar material de apoio para nos auxiliar: jornais para forrar o chão e as áreas que não seriam pintadas, luvas, tesouras, fita adesiva, lápis e muitas idéias.

A produção se iniciou após o intervalo, depois de cuidarmos de todos os detalhes dessa apropriação. Preparamos o camarim e dei algumas instruções para que os alunos manuseassem com eficiência os materiais: as distâncias para o spray não borrar ou respingar a superfície, a luva para proteger nossas mãos, proteger as áreas que não deveríamos pintar, como trabalhar com uma tinta à base de óleo?...

Demos início aos desenhos. Aprendemos com o erro, com o cheiro forte, com a tinta que escorre quando o spray é colocado muito próximo à superfície, mesmo a professora tento alertado. Surpreendemos-nos com a reprodução possibilitada a partir das máscaras de raio-X, das misturas de cores, das maneiras diferentes que cada desenho saia proposto por seu autor.

Os desenhos das crianças pouco se parecem com as noções de decoração que estariam presentes dentro das salas de jantar de muitas famílias, ou mesmo dos concursos de desenhos que observamos em seriamos, novelas e filmes. Essas crianças são aprendizes e autores desses desenhos que custosamente tem ganho liberdade de expressão e autonomia. Se aprende experimentando, observando um adulto artista que oferece um aval do que antes parecia impossível. Se aprende conhecendo e respeito a maneira de fazer do colega, da imagem que nasce ainda sem um nome específico e hoje esse aluno já se permite se aproximar desse desconhecível agradável.

Meu pedido maior nesse momento é para que não retrocedemos no percurso de aprendizagem dessas crianças. Se bonito ou não aos olhos alheios, não nos pertence catalogar essa manifestação. Esses desenhos precisam finalizar os seus caminhos, precisam ser acabados, ou pelo contrário, serão a clara manifestação que o que estão começando a produzir é na sociedade dito como ruim, feio e desprezível de continuar vivo, existindo naquele lugar.

Peço desculpas a quem se sentiu ofendido, ou mesmo desrespeitado dentro do espaço de conhecimento das ações ocorrentes no equipamento do CEU Lajeado. A Ação em momento algum tinha como propósito causar o transtorno que alcançou. Peço desculpas às pessoas envolvidas indiretamente e pelo mal estar desnecessariamente causado.

Grata

Aira Bonfim

Artista-educadora do PIÁ CEU Lajeado

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